A implementação da nova Carteira de Identidade Nacional (CIN) gerou uma grande polêmica no Brasil. A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) protocolou uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a exigência do campo “sexo” e a obrigatoriedade do nome civil para pessoas que adotaram o nome social. Esse movimento tem como objetivo combater o que a entidade considera uma violação dos direitos fundamentais das pessoas transexuais e travestis, especialmente aquelas que ainda não retificaram seus documentos.
O contexto da polêmica
A nova Carteira de Identidade Nacional foi criada durante o governo de Jair Bolsonaro, com o objetivo de substituir o tradicional RG. Entre as novidades, a CIN inclui informações como nome, filiação, sexo, nacionalidade, local e data de nascimento, entre outros dados. No entanto, um dos pontos mais controversos é a inclusão do campo “sexo” e a menção obrigatória ao nome civil, mesmo quando a pessoa adotou o nome social.
A Antra, representando a comunidade de travestis e transexuais, protocolou uma ação no STF questionando essa exigência. O relator do caso é o ministro Dias Toffoli, e a entidade alega que a presença obrigatória desses campos representa uma discriminação clara contra pessoas trans que ainda não conseguiram fazer a retificação de seus documentos.
O que está em jogo?
A Antra sustenta que a manutenção do campo “sexo” na CIN é desnecessária e prejudicial, pois não contribui para a segurança jurídica ou para a administração pública. Além disso, a obrigatoriedade do nome civil, em vez de garantir o uso do nome social, desrespeita a identidade de gênero das pessoas trans e travestis.
Paulo Iotti, advogado responsável pela ação, defende que a exclusão desses campos não causaria nenhum prejuízo à aplicação das políticas públicas ou à administração de dados, mas, por outro lado, evitaria a exposição e a discriminação de pessoas trans e travestis. O advogado afirma que o governo federal não apresentou justificativas convincentes para a criação desses campos na CIN e que, ao mantê-los, violou a dignidade dessas pessoas.
Iotti também esclarece que a ação não busca a declaração de inconstitucionalidade da nova Carteira de Identidade Nacional, mas sim a revisão dos campos “sexo” e nome civil, considerados discriminatórios.
O decreto 10.977 de 2022 e as normas questionadas
O Decreto 10.977, de 2022, que regulamenta a CIN, estabelece que o documento de identidade deve conter, entre outras informações, o nome completo, filiação, sexo, nacionalidade, local e data de nascimento do titular. O artigo 13 do Decreto prevê que o nome social poderá ser incluído na CIN, mas isso somente mediante requerimento, “sem prejuízo da menção ao nome do registro civil”.
Essa exigência de incluir o nome civil, mesmo quando a pessoa já tenha optado pelo nome social, foi considerada um retrocesso pela Antra e outras organizações que defendem os direitos da população trans. Essas entidades argumentam que o nome social é uma maneira legítima de expressar a identidade de gênero, e que não deveria haver qualquer obrigatoriedade de mencionar o nome civil, especialmente no caso de pessoas trans que ainda não conseguiram retificar seus documentos por questões burocráticas ou financeiras.
O histórico de ações e liminares
Essa não é a primeira vez que o governo brasileiro enfrenta resistência em relação à nova CIN. Em 2022, a Antra, em parceria com a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), entrou com uma ação civil pública contra a União. A ação foi em busca de uma mudança no layout da nova carteira de identidade, com a inclusão obrigatória do nome social e a exclusão do campo “sexo”. Na época, o Ministério Público Federal concedeu uma liminar favorável à ação, obrigando o governo a reformular a CIN.
No entanto, a liminar foi acolhida pela Justiça Federal em 2023, mas o governo Lula (PT), ao assumir a presidência, abandonou as medidas antidiscriminatórias que haviam sido estabelecidas na gestão anterior. O Palácio do Planalto, em nota oficial, afirmou que não havia “reincluído nenhum campo”, apenas mantido os campos existentes, sugerindo que as mudanças anunciadas pelo governo anterior nunca haviam entrado em vigor.
O que isso significa para a comunidade trans?
A discussão sobre a nova Carteira de Identidade Nacional e a exigência do nome civil e do campo “sexo” vai além de uma simples questão burocrática. Para muitas pessoas transexuais e travestis, a retificação de seus documentos é uma forma de validação de sua identidade de gênero. A impossibilidade de usar o nome social, ou a obrigatoriedade de registrar o “sexo” biológico, pode causar situações constrangedoras e expor essas pessoas a discriminação em diversos contextos, como em processos seletivos, atendimentos médicos, viagens, entre outros.
Além disso, a mudança no layout da CIN tem implicações para o respeito à identidade das pessoas trans. O uso exclusivo do nome social, sem a necessidade de retificação do nome civil, é uma reivindicação legítima que visa garantir a dignidade dessas pessoas e combater a discriminação. A persistência do governo em manter campos considerados discriminatórios, sem justificativas claras, agrava ainda mais a situação.
O impacto das mudanças no governo Lula
O governo Lula, ao optar por manter os campos de “sexo” e o nome civil na nova CIN, gerou uma grande reação por parte de organizações de direitos humanos e da comunidade LGBT+. Embora o Palácio do Planalto tenha negado que tenha feito mudanças significativas no layout da carteira de identidade, o fato é que a resistência à inclusão de nomes sociais e a remoção do campo “sexo” evidencia um descompasso entre as políticas públicas de inclusão e os direitos da população trans.
A expectativa é que o Supremo Tribunal Federal, ao analisar a ação protocolada pela Antra, tome uma decisão que reforce o direito à identidade de gênero e à não discriminação de pessoas trans. Caso o STF acate o pedido, isso poderá representar uma vitória significativa para a luta contra a discriminação e pela garantia de direitos civis para a comunidade trans no Brasil.